Afeganistão

Para os estrangeiros as questões de cultura, etnicidade e religião podem parecer obstáculos ao desenvolvimento. Muitas vezes, os obstáculos vêm das atitudes dos estrangeiros face aos valores das comunidades com que trabalham. Por exemplo, as relações entre os sexos na sociedade Muçulmana constitui uma matéria em que se verificam os choques mas óbvios com os valores "estrangeiros". É normal que o Ocidente considere a cultura Afegã como opressiva para as mulheres. Em particular, o véu é considerado como um símbolo da opressão, mais do que um aspecto essencial da identidade pública de uma mulher Pushtun. Do mesmo modo, a não participação das mulheres em trabalhos no domínio público é vista como sinal de respeito, não opressiva. Para além disso protege-os de situações embaraçosas. Mas, a maior parte os homens Afegãos consideram isto como sinal de respeito em relação às mulheres. As mulheres Pushtun não aceitam que ser uma mulher seja, em si próprio, uma "deficiência". Estas questões não são aplicáveis em todo o Afeganistão, sendo, portanto, difícil dizer que a situação das mulheres e a cultura sejam idênticas em todo o país. Por exemplo, na região Norte do Uzbec, na cidade de Mazar, as mulheres frequentam classes mistas na Universidade, com fatos ocidentais e sem terem o véu. Aqui não há lugar para generalizações. Dizer que o Islamismo é a religião que mais cresce no mundo já é consenso. Com quase um bilhão e meio de adeptos espalhados pelo mundo, os muçulmanos representam perto de 25% da população mundial e não dá mais para dizer que eles não são uma realidade social, política e religiosa. Muito se fala sobre o Islamismo, mas pouco se sabe sobre ele. a expansão do Islamismo, em um universo de mais de 650 pessoas, 48,1% manifestaram a opinião de que o Islamismo representa uma ameaça para o imperialismo americano. Trata-se de um percentual elevado que só demonstra como o preconceito existe e como está enraizado em nós. Desde cedo somos direcionados no sentido de ver o Islamismo como uma ameaça, seja política, religiosa ou social. No nosso imaginário, Islamismo é sinônimo de fanatismo, terrorismo. Um avião que cai, um prédio que explode, logo somos induzidos a achar que se trata de obra de algum muçulmano árabe fanático, em plena "guerra santa" contra o ocidente. Um dos erros mais comuns é a associação que se faz do Islamismo com a cultura árabe. Apesar de o Islamismo ter surgido na península arábica, e de ter na língua árabe - a língua do Alcorão - o fator de unidade, atualmente os árabes representam uma minoria nesse universo, menos de 18% do total. O próprio uso da palavra "árabe" expressa um preconceito, pois coloca sob o mesmo denominador, africanos, curdos, persas, turcos. Desconhecemos suas origens, suas culturas, suas tradições, as particularidades específicas de cada povo. Muito do que é passado pela mídia traz o viés do etnocentrismo, nós, o ocidente, civilizados, cultos, eruditos, belos e formosos, e eles, o oriente, a barbárie, a ignorância, o atraso. Como no século XIX, continuamos a impor a nossa maneira de ver o mundo, os nossos valores, nossa cultura, estes sim, verdadeiros e legítimos. Estranhamente apagamos de nossa memória o fato de que muito do nosso cotidiano é devido à cultura islâmica que dominou o mundo por muito tempo. Esta postura, em grande parte, deve-se a uma política colonialista européia, iniciada no século XIX, que, ao "levar a civilização aos povos bárbaros", na verdade representou um processo contínuo de apartheid, exploração, expropriação e genocídio. Muitas das questões que afligem o mundo contemporâneo têm origem nessa política de dominação. Contrariamente ao que se pode pensar, o Islamismo reconhece, entende e aceita a existência dos diferentes povos. Em um de seus versículos, o Alcorão, o livro sagrado do muçulmano, diz que os homens foram criados em nações para que se conhecessem e se compreendessem e não para que fossem inimigos. Em seu "Sermão da Despedida", o profeta Mohammad, cujo exemplo de vida é seguido por todos os muçulmanos, disse que um árabe não é superior a um não árabe, nem um não árabe é superior a um árabe; o branco não é superior ao negro, nem o negro tem qualquer superioridade sobre o branco, exceto quanto à temência a Deus; que os homens têm certos direitos em relação às mulheres, mas elas também têm direitos sobre os homens. Mas nem sempre , por exemplo , se alguma mulher mostrasse o rosto em público, "sua casa seria marcada e seu marido punido". Mulheres não podiam ser tratadas por médicos do sexo masculino e, por causa disso, muitas pacientes morriam por falta de atendimento mesmo quando conseguiam chegar a um dos raros postos de saúde. Todas estavam proibidas de falar com homens que não fossem da família. Não podiam rir alto, aparecer em manifestações públicas, usar cores fortes, praticar esportes nem estudar. Todos os nomes de lugares públicos que tinham a palavra "mulher" foram trocados. Exemplo: O Jardim das Mulheres foi rebatizado de O Jardim da Primavera. Espancar mulheres por razões disciplinares era um fenômeno rotineiro no regime Talibã. A polícia religiosa usava o chicote se visse algum tornozelo pela rua. Mulher que usasse salto alto e barulhento, ou meias finas demais, também entrava na chibata. Quanto à mídia, esta faz a sua parte, limitando a nossa forma de compreender o mundo aos padrões convencionados como "civilizados". Salienta o que é estranho à cultura ocidental e esconde o que efetivamente acontece naquelas regiões. Enfatiza as proibições, as restrições impostas às mulheres, enfim, o aspecto exterior da questão, sem estabelecer uma relação de causa e efeito dos acontecimentos, sem definir o que são costumes e tradições e o que é verdadeiramente islâmico. Sob essa ótica, para o ocidente, tudo é esquisito no Islamismo, e do ponto de vista da aparência externa, não há muita diferença do Afeganistão para a Arábia Saudita ou a Jordânia, muito embora Arábia Saudita e Jordânia se alinhem politica e ideologicamente com o ocidente. Vivemos num mundo globalizado, e por isso, altamente interdependente. As transformações no oriente e no ocidente influenciam um e outro profundamente. De um lado, temos os muçulmanos querendo recuperar-se dos efeitos perversos do colonialismo e sua sociedade exigindo mudanças sociais e politicas, mas qualquer mudança põe em perigo a correlação de forças atuais. Do outro lado, as grandes potências se opõem a iniciativas que ponham em cheque sua hegemonia política, e os países dependentes, temendo perder uma soberania recém conquistada, vêem com desconfiança qualquer tentativa por parte de quem, até bem pouco tempo, era o opressor. A preocupação humanitária em relação à condição da mulher muçulmana é muitas vezes acompanhada por um discurso que sataniza o Islamismo, o que faz com que os muçulmanos fiquem mais desconfiados ainda. As consequências desses embates, cultural, político e social, invariavelmente acabam repercutindo na mulher, o elo mais fraco dessa corrente. O caso do Afeganistão, mais em evidência, chega até nós sob a forma de aberração. No entanto, não nos ensinam que se trata de um país que vem de uma história de invasões, ocupação soviética por mais de 10 anos, que desestruturou sua economia, que sua população vive sob um cotidiano de guerra constante, uma vez que o Taleban não detém o controle total do país, que existe uma luta interna de poder entre facções muçulmanas. Quando o Taleban usa a retórica ideológica para privar a mulher muçulmana do acesso à educação básica, a mídia ocidental condena, e com razão. Afinal, há 14 séculos o Islamismo assegurou direitos sociais e econômicos que objetivaram garantir igualdade entre homens e mulheres, inclusive o acesso igual à educação, o direito de expressão, de propriedade, de voto. Mas, não tem razão quando define as restrições impostas à mulher afegã como parte da doutrina islâmica. O Islamismo não é a prática que dele fazem alguns muçulmanos. A crítica ao Taleban, assim, transforma-se num pretexto para condenar os legítimos movimentos islâmicos em geral, e mostrar ao ocidente que o Islamismo é incompatível com as modernas exigências sociais e políticas e que nada poderia ser pior do que uma sociedade fundada nos princípios islâmicos. E quando ocorre a libertação para a liberação de televisores e videocassetes reapareceram nas prateleiras das lojas, o comércio afegão ganha nova vida sem as restrições do Talibã. Em Herat, perto da fronteira com o Irã, comerciante reabriu loja de televisores homens fizeram fila nas barbearias para raspar a barba, a primeira sessão de cinema em Cabul atraiu uma multidão. Como se fosse celebração, viram-se pipas - um passatempo popular proibido por anos - voar alto sobre as casas. Nos bazares e táxis de Cabul, ouve-se música alta pela primeira vez desde 1996. O pesadelo do obscurantismo medieval, contudo, ainda paira como uma advertência sobre o Afeganistão. A lembrança do cotidiano de terror está bem viva. O futuro é incerto e depende de chefes tribais acostumados a fazer as próprias leis. Não há no Afeganistão uma revolução feminista queimando burcas. Mas se a esperança de um futuro civilizado pode ser personalizada, reside no rosto de centenas de mulheres que se reuniram em Cabul para exigir o direito de trabalhar. O Talibã as tinha proibido de exercer qualquer profissão, exceto a medicina. Também as obrigava a andar cobertas dos pés à cabeça. Num cenário desses, a simples exibição à luz do sol de rostos femininos já é um progresso considerável. O fato é que as mudanças nas cidades liberadas pelo avanço da Aliança do Norte têm sido rápidas em várias facetas. Não se trata, contudo, de fazer a sociedade afegã funcionar da noite para o dia de acordo com os padrões modernos de democracia e liberdade. Liberdade no Afeganistão é, para citar um exemplo banal, o direito de expor a foto do vovô na parede. Só agora, com jornalistas estrangeiros podendo circular pelas cidades afegãs, se conhece com detalhes mais vívidos como foi assustador o cotidiano sob o regime dos mulás no Afeganistão. Na verdade, grupos como o Taleban, em nada diferem de tantos outros espalhados pelo mundo, na medida em que são o resultado das condições incertas do mundo moderno. Movimentos semelhantes podem ser encontrados em outros países e entre as muitas religiões do mundo e não imaginamos que eles possam ameaçar a hegemonia das grandes potências. Os cristãos americanos que bombardeiam clínicas de aborto, hindus que atacaram a mesquita de Babri, e que estão de olho nas inúmeras mesquitas espalhadas pela Índia, judeus ultra-ortodoxos que atiram pedras em mulheres que andam pelas ruas vestindo calças ou mangas curtas, enfim, todos são a expressão contemporânea da intolerância e, nesse sentido, têm mais em comum com o Taleban do que eles (ou o Taleban) percebem, e muito menos a ver com o Islamismo, como somos levados a supor. Todos esses movimentos, apesar de suas diferenças externas, são uma reação às dramáticas mudanças sociais, políticas e econômicas que vêm ocorrendo nos últimos 150 anos. As transformações são rápidas, adquiriram uma dinâmica própria e estão além do controle das pessoas comuns. Os muçulmanos em geral acalentam o sonho do estado islâmico, mas percebem que esse sonho vai ficando cada vez mais distante, diante do avanço inexorável de uma civilização global secular agressiva e tecnologicamente mais avançada. Em seu movimento de reação, esses grupos acabam por enfatizar o lado material, porque mais fácil de ser controlado e de ser imposto ás pessoas. Na verdade, a violência do Taleban contra os que desrespeitam as regras não deixa de ser a implementação da moderna visão de que a interferência do estado na vida das pessoas é a resposta para a maior parte dos problemas sociais. Mas, certamente o Islamismo não é isso e a prova é toda sua história de tolerância e convivência pacífica com as diversas culturas com as quais ele interagiu no decorrer dos séculos.

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